Toda vez que eu passava pela esquina da minha rua de manhã, eu podia ouvir; "UM!!! DOIS!!! UM!!! DOIS!!! LEVANTAAAAAAAAAA!!!!!!!!" - era a voz da Sheila, professora de educação física, dando aula na academia uns 200 metros adiante. Ela tinha que falar mais alto que a música usada na aula de ginástica. Haja voz! E haja fôlego também, pra ficar malhando o dia inteiro!
Além de dar aula na academia, Sheila também trabalhava em escola pública, numa que fica bem junto da comunidade local. Mas o dinheiro que ganhava com estas duas atividades não dava pra nada. Havia ainda a preocupação de acontecer alguma coisa, alguma doença ou acidente que a impedisse de se movimentar e, por consequência, de trabalhar. Foi por isso, que paralelamente ela fez faculdade de Direito e se tornou também advogada. Mas nem sempre era prático ou possível conciliar essas duas atividades.
Pra começar, ela não podia entrar no forum com as malhas que usava para dar aula de ginástica. De vez em quando ela esquecia deste detalhe e acabava tendo que entrar numa loja na cidade, comprar uma roupa, um par de sapatos e se trocar antes de ir verificar algum processo.
Ela tentava separar as coisas. Tinha a hora de ser professora e a hora de ser advogada. Mas quando adolescente, Sheila parecia uma Nadia Comaneci, uma Jade Barbosa na ginástica de solo: não podia negar, mais que advogada, ela era uma atleta! Por isso, por mais que tentasse, acabava misturando as coisas.
Uma vez, depois de uma aula de atletismo, foi para o forum, na maior pressa. Vestida numa dessas roupas de advogada (sapato alto, blusa branca de gola, saia e blazer preto), viu que a entrada do edifício estava quase completamente fechada por uma enorme poça d'água. Grupos de advogados e pessoas do meio jurídico ocupavam as únicas partes secas do caminho, bloqueando a passagem. Por um instante Sheila esqueceu que naquele momento deveria interpretar somente o papel de advogada... Respirou fundo, se posicionou e num impulso, deu uma curta mas poderosa corrida que se transformou num salto enorme que a fez passar voando sobre a poça d'água!!!
Os advogados pararam de conversar e olharam incrédulos para tamanha demonstração! "Ohhh!!!" Que advogada, heim?! Sheila ajeitou o cabelo, colocou a gola no lugar, o sapato que quase lhe saiu do pé e foi em frente.
Falando em sapato, depois de passar o dia inteiro dando aula calçando um tênis largo, nem sempre era fácil colocar um sapatinho daqueles pontudo e de salto alto. O pé não entrava. Muito vaidosa, ela fala que vai morrer calçando um salto.
Entretanto, não era sempre que conseguia casos para defender como advogada. Na maioria das vezes tinha de ser mesmo professora em tempo integral e mais um pouco. Ficar às voltas com as crianças, organizar treinamentos, jogos, competições e apresentações.
Foi numa dessas vezes em que o trabalho como advogada estava escasso e ela já não sabia mais o que fazer para pagar todas as contas que chegavam em envelopes, que observou que não estava enxergando direito. O oftalmologista preparou a receita do óculos que ela teria de usar, mas ao chegar na ótica, Sheila quase caiu pra trás quando viu o preço que teria de pagar pelo acessório. Era quase o valor de seu salário! Mas o que fazer? Teve de comprar o óculos em muitas prestações mensais.
Fazia poucos dias que ela usava o óculos bifocal caríssimo, quando teve de levar seus alunos para uma competição de atletismo num estádio importante. Para aquelas crianças seria um dia inesquecível e Sheila, a professora, estaria lá para dar ânimo e estimular a garotada!
Na pista de corrida do estádio as crianças já estavam a postos! A excitação e a expectativa da vitória era grande! Sheila estava junto da murada da arquibancada para torcer pelos alunos e coordenar o evento. Muitas pessoas também estavam lá para torcer pelos seus. O árbitro deu o sinal e a criançada começou a correr!
Sheila começou a pular e gritar, levantando os braços! Parecia até carnaval! E foi quando deu mais um soco no ar que seu dedo enganchou naquele óculos caro, que foi arrancado de seu rosto e voou pelos ares bem diante das crianças que estavam vindo!!!
"NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO!!!!!!", gritou enquanto o óculos girava no ar! Ela começou a chorar no mesmo instante. As crianças, que esperavam ver a professora animando a corrida, não entenderam nada quando viram a cena! O que haviam feito de errado?
"Meu óoooooculos!!!" Era possível ouvir o grito do lado de fora do estádio. O óculos bateu numa perna, quicou num joelho e fez sua última trajetória até um enorme ralo que recolhia as águas de chuva das pistas e arquibancada.
"Meu óculos! Meu pagamento! Meus 500 reais! Parem a competição! Chamem os árbitros!" Agora as crianças tinham entendido o problema e caíam na gargalhada. Sem ainda perceber o que estava havendo, os árbitros vieram correndo acudir a professora. A competição parou e todos se juntaram em torno do ralo. O óculos tinha ido para o centro da Terra!
Do outro lado do gramado, um dos árbitros veio com a vara de um atleta que já fizera o seu salto em altura e finalizou com êxito a operação de resgate.
De volta para casa, entre um soluço e outro, Sheila foi pensando em como seria bom se no dia seguinte pudesse contar com mais um caso que a fizesse interpretar outra vez aquele outro papel de advogada, pois só assim poderia finalmente pagar seu óculos.