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Houve um tempo em que trabalhei durante vários meses numa área de risco na cidade do Rio de Janeiro. Entende-se aqui como "área de risco" um lugar geralmente dentro ou perto de uma comunidade carente onde há frequentes confrontos entre a polícia e bandidos, como também entre grupos rivais. Um lugar perigoso.
Nos primeiros dias, confesso que me senti bastante desconfortável. Esta sensação devia ser facilmente percebida, porque só de olhar as pessoas do lugar já sabiam que eu não era dali. Pareciam me olhar com desconfiança, o que me deixava ainda mais sem jeito. Era um outro mundo, uma outra realidade. E eu andava sem saber o que iria acontecer a cada passo.
Mas a gente se acostuma com tudo. Em poucas semanas, eu já sabia andar rapidamente pelos corredores, becos e ruelas. Por onde entrar para desaparecer instantaneamente da rua principal. Já me acostumara com a falta de privacidade dos moradores e não me inibia em cortar caminho pela casa dos outros, passando por baixo de roupas penduradas na corda, me esquivando de porcos que se regalavam em poças de lama, espantando nuvens de moscas e assustando os cachorros que apareciam no caminho.
Pela minha natureza comunicativa, fiz logo amizade sobretudo com adolescentes e crianças. Mas também aprendi novos reflexos e outras formas de comunicação próprias daquele lugar. Para que lado e a que distância deveria olhar com atenção. Um código que eu nem sabia que existia.
Costumava ficar de papo furado com a garotada, fazia brincadeiras. Pegava lápis e papel e desenhava seus rostos. Depois pedia que me desenhassem também. Caía todo mundo na gargalhada com os resultados. Me ofereciam doces e biscoitos, uma flauta pra tocar. A cada dia a gurizada aumentava em volta de mim.
Mas com a violência aumentando assustadoramente, decidi parar de trabalhar naquele lugar. Saí dali com lágrimas nos olhos ao me despedir dos garotos. Muitas vezes quando passava pela avenida principal e olhava em direção daquela comunidade, eu constatava que mesmo de longe eu ainda reconhecia muitas das casas humildes e vielas. Eu ainda sabia o que dava aonde.
E tudo passou. Então, já trabalhando em outro lugar da cidade, uma vez eu estava voltando para casa num ônibus, às 11 da noite. Devia haver uns 15 ou 20 passageiros no ônibus. Todos cansados, em silêncio. Ao passar por uma região perigosíssima, uma das muitas apelidadas de "Faixas de Gaza" da cidade, todo mundo ficava meio apreensivo dentro do coletivo. Tudo o que queriamos era que o ônibus passasse rápido por ali. Era óbvio que, no fundo, todo mundo estava com medo. Rezávamos para que nada fizesse o ônibus parar. Não-para não-para não-para!!!
Só que nesta noite o ônibus parou. Um olhou pra cara do outro e aguardou o que poderia acontecer em seguida. Naquele horário era tudo possível. Ouvimos as vozes, os passos, as gírias de um grupo de uns 10 entrando no ônibus e tomando o corredor central. Ninguém tinha coragem de olhar de frente. De rabo de olho, eu vi as pernas magras, os chinelos de dedo, os pés esparramados. Todo mundo esperando pra saber o que ia acontecer. Atrevida, olhei pra cara deles -- bem na hora que olharam pra minha cara também!
2 segundos se passaram até que um deles, o que usava um gorro que cobria as sobrancelhas com um brasão do Flamengo, se abriu num sorrisão: "AEEEEÊ QUEM TAÍ!!!!" Eu os reconheci imediatamente! Eram os garotos que eu conheci naquela "área de risco" onde trabalhei!!! Eles, que eram uns guris, já estavam uns homens! Que surpresa! Me reconheceram! Afinal era ótimo! Já não estava mais com medo!
Todos sentaram em volta de mim fazendo arruaça. Era o jeito deles. Uns botavam meio corpo pra fora da janela do ônibus gritando "UHUUU!!!" Começaram a batucar na lataria do veículo. "E AÊ?! NUM PARECEU MAR LÁ NAS PARADA?" (Só falavam gritando.) "PARECE LÁ! TÁ MANERO!!!". Começamos a lembrar das brincadeiras e caímos na risada. Um deles me falou que ainda guardava meus desenhos.
Eles foram embora dois pontos depois e o ônibus seguiu viagem tranquilo. A zona de perigo ficara para trás. Então eu percebi que os outros passageiros estavam me olhando de forma esquisita. Estavam todos ainda paranóicos. Continuavam desconfortáveis, evitavam meu olhar. Uma coisa estranha que eu não sei nem explicar. Até que entendi. Eu, euzinha, passei a ser a “suspeita”!!! E foi assim que por meia hora eu me senti como se eu fosse um dos garotos da faixa de Gaza.
4 comentários:
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Leila Franca
28 de outubro de 2009 às 21:10Oi Claudinha, que bom ver vc aqui. É aquela coisa do estigma e da empatia. Foram vivências que eu não mais esqueci.
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claudine ribeiro
29 de outubro de 2009 às 00:08Tem coisas em que passamos na nossa vida que nunca esquecemos, principalmente aquelas em que nos tocaram no coração. Realmente amiga há pessoas que são totalmente diferentes de nós em todos os sentidos, mas com o coração aberto devemos perceber que com aquela diferença podemos aprender muita coisa e ensinar também, é uma troca.
Bjs.
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Leila Franca
29 de outubro de 2009 às 00:27Oi Claudine, com certeza eu nunca esqueci das crianças e jovens que conheci naquele lugar.
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28 de outubro de 2009 às 20:51
História muito bonita essa tua. Bonita e triste, diga-se de passagem. Há gente diferente da gente, mas tão diferente que passamos a temê-las. Claro que os noticiários ajudam a por medo em todo mundo, retratam a realidade, mas me dá uma pena mesmo assim. Quanta gente boa que nós tememos?
Trabalhei em Hospital Psiquiátrico e sabe o que aconteceu? Nada! Andava tranquilamente nos corredores de uma das unidades de internação sem ser agredida ou molestada de alguma forma. Trabalhei também em outros dois hospitais municipais, direto com a pobreza e...nada! Sempre fui muito respeitada...
Bjão!